Nova lei regulamenta transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos do mesmo contribuinte
Publicado em 09/01/2024
Em 29 de dezembro de 2023, foi publicada a Lei Complementar nº 204/2023, que, além de prever a não incidência de ICMS nos casos de transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa, também regulou a transferência dos créditos de ICMS relativos às operações e prestações anteriores, alterando o artigo 12 da Lei Complementar 87/1996 (“Lei Kandir”), com eficácia a partir de 1º de janeiro de 2024.
Antes de adentrar ao conteúdo normativo da Lei Complementar nº 204/2023, é importante rememorar que tais alterações legislativas decorrem do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (“ADC”) nº 49, pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”), que em 19 de abril de 2021 declarou inconstitucionais alguns dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996, para afastar a incidência do ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa.
Em que pese a existência de entendimento jurisprudencial consolidado sobre a matéria há tempos, diante da edição da Súmula nº 166 do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”)[1], dentre outros precedentes[2], o STF deu parcial provimento aos Embargos de Declaração da Fazenda Pública, nos autos da ADC nº 49, para modular os efeitos do acórdão paradigma somente a partir do exercício financeiro de 2024[3], prevendo, ainda, que, caso “exaurido o prazo sem que os Estados disciplinem a transferência de créditos de ICMS entre estabelecimentos de mesmo titular, fica reconhecido o direito dos sujeitos passivos de transferirem tais créditos”.
Muitos debates surgiram na esteira da decisão proferida na ADC nº 49, principalmente por contribuintes que possuem cadeia de produção e distribuição espalhada por diversos estados, situação em que produtos acabados ou insumos devem ser movimentados para revenda (ou produção) – e que o destaque do ICMS assegurava algo próximo a uma “não-cumulatividade” neste tipo de modelo de negócios.
Diante deste contexto, em 1º de dezembro de 2023, foi publicado o Convênio ICMS nº 178/2023, editado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (“CONFAZ”), que estabeleceu a obrigatoriedade e os procedimentos para a transferência de créditos do ICMS do estabelecimento de origem para o estabelecimento de destino do mesmo titular.
Em seguida, o CONFAZ também publicou o Convênio ICMS nº 225/2023, que alterou as normas gerais relativas ao regime de substituição tributária do ICMS dispostas no Convênio ICMS nº 142/2018, ao prever que, na hipótese de transferência promovida entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, o ICMS destacado deve ser deduzido na nota fiscal de transferência.
Releva notar que o CONFAZ havia publicado, em 1º de novembro de 2023, o Convênio ICMS nº 174/2023, com conteúdo idêntico ao Convênio ICMS nº 178/2023, o qual foi rejeitado pelo Estado do Rio de Janeiro. No entanto, como Convênio ICMS nº 178/2023 não regulou nenhum benefício fiscal de ICMS, foi excluída a menção à Lei Complementar nº 24/1975, sendo assim desnecessária uma decisão unânime dos Estados para a sua aprovação, nos termos do artigo 2º, §2º[4], da referida Lei.
Ocorre que, sob o ponto de vista formal, os Convênios ICMS do CONFAZ não são os veículos normativos adequados para a regulamentação do aproveitamento de crédito de ICMS nos casos de transferência de mercadorias entre estabelecimentos de uma mesma empresa, cuja atribuição cabe à lei complementar, nos termos da alínea “b”, inciso III, do artigo 146[5] e alínea “c”, inciso XII, § 2º, inciso II, do artigo 155, da Constituição Federal (“CF/88”)[6].
Já sobre a matéria, o conteúdo dos Convênios emitidos pelo CONFAZ deve estar de acordo com a Lei Complementar nº 204/2023, a qual deve, por sua vez, ser interpretada à luz do que foi definido no julgamento da ADC nº 49 pelo STF. Entretanto, não é isso o que se verifica.
A Lei Complementar nº 204/2023 introduziu o § 4º ao artigo 12 à Lei Complementar nº 87/1996, para prever que a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do contribuinte não é considerada fato gerador do ICMS e, no mesmo parágrafo, determinar a manutenção do crédito relativo às operações e prestações anteriores em favor do contribuinte, inclusive nas transferências interestaduais, estando, até então, em consonância com o entendimento firmado na ADC nº 49.
Em relação às transferências interestaduais, foi estabelecido um limite ao crédito a ser transferido, o qual corresponde à alíquota interestadual, que pode ser de 4%, 7% ou 12%, nos termos do inciso IV do § 2º do artigo 155 da CF/88 e Resoluções do Senado nº 22 de 1989 e nº 13 de 2012. Ainda, trouxe a obrigação da unidade federada de origem reconhecer o excesso de crédito, caso os créditos das operações e prestações anteriores superem o limite imposto no inciso I.
Todavia, a problemática começa com a estipulação de que o limite do crédito de ICMS a ser transferido deve aplicado sobre “o valor atribuído à operação de transferência”. Ao considerarmos a declaração de inconstitucionalidade do § 4º do artigo 13 da Lei Kandir no julgamento da ADC nº 49 pelo STF, há muitas dúvidas a respeito da definição dessa base de cálculo, que não considera variações de custo na formação do estoque. Além disso, em que pese não ocorrer o fato gerador do ICMS nas transferências, a limitação à transferência do crédito pode, em algumas situações, trazer embaraços financeiros ao fluxo de produção já previamente estabelecido. Assim, qual é a lógica de se atribuir um valor para essa operação? Diante do vácuo normativo, não está claro se a definição do valor atribuído para transferir o crédito será definida pelo próprio contribuinte ou por lei ordinária estadual.
Para além dessa questão, sabe-se que a Lei Complementar nº 204/2023 advém do Projeto de Lei Complementar (“PLP”) nº 116/2023, que trazia, inicialmente, a possibilidade de transferência do crédito por opção do contribuinte, equiparando a transferência à operação sujeita a ocorrência do fato gerador do imposto. Fica simples quando observa-se que os principais beneficiados pela Súmula n. 166 do STJ eram estabelecimentos prestadores de serviço que possuíam inscrição estadual para movimentação de bens, mas que se sofressem a incidência nesta transferência interestadual não poderiam recuperar o valor do imposto, já que o bem transferido não seria revendido, mas sim utilizado na prestação de serviço.
O presidente da República vetou, contudo, o dispositivo que previa essa facultatividade (§5º do artigo 12º), sob o fundamento genérico de que tal proposição legislativa contrariava o interesse público, podendo trazer insegurança jurídica, dificultar a fiscalização e elevar a probabilidade de ocorrência de elisão ou evasão fiscal, conforme se observa pela Mensagem nº 743 de 28 de dezembro de 2023. Indagamos, qual a dificuldade teria a fiscalização de averiguar uma sistemática a que estava sujeita há pouco e era válida, mais precisamente, até 31 dezembro de 2023?
O veto poderá ser reanalisado e derrubado pelo Congresso Nacional, em sessão conjunta da Câmara e do Senado, por maioria absoluta, de acordo com o artigo 66, §4º, da CF/88[7].
Nota-se que o dispositivo vetado também gerou incerteza jurídica, pois há quem defenda que o STF, no julgamento da ADC nº 49, tratou a transferência de créditos de ICMS nas operações de remessas de mercadorias de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte como uma faculdade e não como uma obrigação do contribuinte. Tanto é que foram opostos novos Embargos de Declaração nos autos da ADC nº 49, que se encontram pendentes de julgamento, com o objetivo de que a Corte Suprema corrija a obscuridade quanto à natureza obrigatória ou facultativa da transferência do crédito do ICMS nessas operações.
Por fim, os Estados já começaram a internalizar as regras para a transferência de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, antes que fossem sanadas as incongruências existentes entre os Convênios ICMS nº 178/2023 e 225/2023 do CONFAZ e a Lei Complementar nº 204/2023, em violação ao entendimento proferido na ADC nº 49 pelo STF. É importante que tais normas sejam analisadas com extrema cautela a evitar recolhimentos desnecessários e, até determinado ponto, ilegais.
Nós, do time Alma Law, nos colocamos à disposição para auxiliarmos nas discussões e demandas sobre o assunto.
[1] Súmula nº 166 do STJ: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
[2] Tema 1.099/STF, Tema 297/STF e Tema 259/STJ.
[3] Ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito (28.04.2023).
[4] LC nº 24/1975: “Art. 2º – Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.
(…).
-
2º – A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.”
[5] CF/88: “Art. 146. Cabe à lei complementar:
(…);
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
(…);
-
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;
[6] CF/88: “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(…);
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
(…).
-
2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(…);
XII – cabe à lei complementar:
(…);
-
c) disciplinar o regime de compensação do imposto;
[7] CF/88: “Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.
(…).
-
4º O veto será apreciado em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores.”
Autores: Bruna Almeida Santos e Francisco Lisboa Moreira.
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